Os druidas (os sacerdotes dos celtas), portanto, também eram pagãos - como são pagãos atualmente os povos indígenas da Amazônia, os maori da Nova Zelândia, os aborígenes da Austrália, enfim, praticamente todos os povos cujas religiões tenham como foco fundamental a sacralidade da vida e do planeta.
Praticamente tudo o que sabemos sobre os druidas históricos nos foi relatado por historiadores gregos e romanos que tiveram contato com os celtas nos séculos que antecederam a era cristã. Políbio, Amiano Marcelino, Tito Lívio, Julio Cesar e Plínio o Velho (entre muitos outros) escreveram sobre os druidas, descrevendo-os como poderosos sacerdotes, sábios e juristas, mas também como inspirados poetas,
místicos e conselheiros. Além de terem sido os sacerdotes dos povos celtas, os druidas desempenhavam todas as funções acima citadas. Foi por isso que Julio Cesar afirmou em seus Comentários que, para se tornar um druida, um jovem candidato deveria dedicar de doze a vinte anos de estudos, dada a enorme quantidade de informações que um druida precisava absorver sobre diversas disciplinas.
Um druida deveria ser tão versado nas leis de seu povo quanto hábil em contar os mitos e lendas que formaram aquele povo. Um druida deveria ser sábio o bastante para aconselhar os reis, como também deveria ser sensível o bastante para praticar a cura, um elemento fundamental dos deveres dos druidas, como atesta uma das Tríades da Grã-Bretanha, que diz:
“Três deveres de um druida:
- curar a si mesmo;
- curar a comunidade;
- curar a Terra.
Pois se assim não fizer, não poderá ser chamado de druida.
(Tríades da Ilha da Bretanha)”
Versos como estes eram usados pelos celtas para facilitar a memorização de diversos níveis de conhecimento - da sabedoria do dia-a-dia às suas leis mais elevadas, das regras sociais à mitologia mais profunda. Isto porque os celtas não usavam a escrita para transmitir seu conhecimento, valendo-se da tradição oral como meio de preservação de sua sabedoria. Obviamente, muito se perdeu com o passar dos séculos, mas a essência do druidismo, seus conceitos fundamentais e suas crenças, permaneceram imutáveis até os dias de hoje.
O Druidismo Hoje
Certamente as práticas do druidismo moderno são muito diferentes das dos druidas históricos, pois vivemos em outros tempos, com outras necessidades. Essa é uma das vantagens de uma tradição oral. Ao contrário de religiões que têm como base textos sagrados imutáveis, o druidismo não fica limitado a escrituras ou leis, mas sabe evoluir com o passar dos séculos, sendo sempre algo novo, significativo e capaz de satisfazer os anseios de quem segue este caminho. No druidismo não há espaço para o radicalismo, não há espaço para interpretações diferentes de um mesmo conceito (como acontece entre as diversas correntes cristãs e islâmicas, por exemplo, em que cada uma tenta impôr a sua versão, a sua interpretação dos textos sagrados). Os textos sagrados do druidismo são os mesmo há milhares de anos, mas eles evoluem, porque não foram escritos: os "textos" sagrados do druidismo são o passar das estações do ano, são os ritmos da Natureza, as marés, as flores, as tempestades, as trilhas do Sol e da Lua através do firmamento. É um texto "interativo", que não deve ser memorizado ou entendido, mas sim sentido no fundo de nossas almas.
Pois o segredo do druidismo é a integração das almas do druida com a Natureza, do druida com outra pessoa, do druida com o mundo em que vive, com seu trabalho, com seu alimento. Eis outro ponto chave do druidismo: o animismo, ou seja, a crença de que tudo tem alma (anima). Assim como outros caminhos pagãos de cunho xamânico, o druidismo acredita que uma pessoa tem alma, bem como um cão, uma árvore, uma pedra e até uma casa ou um prato de comida.
Tudo é energia e alma é energia. Se tudo tem alma, tudo tem vida; e tudo que tem vida é sagrado. O que é sagrado deve ser respeitado e honrado. Ao interagir com o mundo de alma para alma, o druida estabelece uma conexão espiritual que permite o fluxo da awen.
Awen
Esta pequena palavra galesa é usada no druidismo em sua língua original por ser de difícil tradução. Outro motivo de mantê-la sem traduzir é devido à sua sonoridade, normalmente entoada nos rituais na forma de um poderoso mantra. Seu significado é “inspiração que flui”. Nas palavras de Phillip Shalcrass (líder da BDO) awen é "aquela estranha sensação de formigamento que nos domina ao contemplarmos uma bela peça de arte, ao ouvirmos uma linda canção pela primeira vez, ao vermos o rosto da pessoa que amamos”, enfim, é a sensação de vida que nos arrebata ao permitirmos que nossas sensações se manifestem através de nosso corpo. Esse fluxo de inspiração que jorra (outra definição para awen) não deve ficar represado, deve se transformar em ação. Um dos desafios para o druida moderno é justamente esse: transformar inspiração em ação. Esse jorro pode brotar também de um momento de ódio e indignação. Podemos produzir um lindo quadro ou uma bela poesia depois de sermos arrebatados pela visão de um estonteante pôr-do-sol, da mesma forma que, ao vislumbrar um rio poluído, podemos nos encher de coragem para protestar e tomar alguma atitude que altere essa condição do rio.
Para um druida, o mundo todo é fonte de inspiração, a vida em todas as suas formas e facetas é poesia. Por isso, a tradição dos bardos - poetas e contadores de mitos e lendas - é tão importante no druidismo.
Bardos, Ovates e Druidas
Como tudo no universo celta era tripartido (3 mundos – de cima, do meio e de baixo; 3 reinos – terra, água e ar; etc) também eram tripartidas as funções do druida. Embora não fossem uma hierarquia, essas três funções eram aprendidas na ordem exibida no título. Depois disso, o druida tinha como opção exercer uma delas em especial.
Como resumiu Estrabão (1º século a.e.a): “Os bardos são cantores e poetas; os ovates, filósofos naturais e divinos; os druidas, além da filosofia natural aplicam também a filosofia moral”.
Os bardos: eram os druidas especializados na absorção e transmissão do
conhecimento druídico, através dos mitos, lendas, poemas e canções
que transmitiam a memória ancestral. Os bardos eram os zeladores da tradição e da memória da tribo.
Os ovates: palavra com a mesma origem do verbo português “vaticinar” (predizer, prenunciar, adivinhar). Eram os responsáveis pela cura e pela previsão de eventos futuros. Através de técnicas divinatórias (divinar = conversar com o divino, com os deuses) como o ogham, por exemplo, os ovates eram capazes de antever eventos ou endências futuras, orientando assim a comunidade. Eram xamãs por excelência, que conversavam com os ancestrais para pedir bênçãos e conselhos, que conheciam os animais e os segredos das ervas e das árvores.
Os druidas: esse nome significa “aquele que tem a sabedoria do carvalho”. Eles eram os sábios, os sacerdotes que conduziam os rituais, os conselheiros dos reis e os juristas das tribos. Seus “templos” eram as clareiras nos bosques sagrados (nemetons). Eram extremamente respeitados pelo povo e muitas vezes suas palavras tinham mais peso do que dos reis e rainhas.
Portanto, a função do bardo é conhecer sua história e suas lendas para transmiti-las aos demais. Sua matéria-prima é o passado, a experiência, a memória ancestral. Já o ovate trabalha com o futuro, o potencial, o porvir. São duas facetas do mesmo conhecimento sagrado que permeia os mistérios do tempo e permite, com base na experiência do passado e das potencialidades do futuro, criar um presente melhor, que é a função do druida.
Com base nesses fundamentos primordiais, o druidismo moderno desenvolve diversos trabalhos voltados para o reequilíbrio nas relações entre os humanos e a Natureza. A função do druida hoje é transformar, interagir com o mundo para que ele seja um lugar mais equilibrado.
O druidismo em ação
Fica claro porque que praticamente todos os druidas modernos envolvem-se, de um modo ou de outro, com causas ecológicas ou de bem-estar animal, ou ainda de vida alternativa, reciclagem de lixo, consumo responsável e outras formas de resgatar a dignidade da vida de cada um de nós.
Na Inglaterra, militantes ecológicos de organizações como o Greenpeace e o WWF costumam agir em conjunto com os druidas de organizações como a Druid Network e de ordens como a B.D.O. (British Druid Order) e a O.B.O.D. (Order of Bards, Ovates and Druids) em manifestações e campanhas ambientais. Muitos são membros de ambas as instituições. No Brasil, com a chegada do druidismo, essa aproximação também ocorreu, pois se nós e todo o universo somos feitos de corpo, mente e alma, o universo ecológico deve ser equilibrado através de campanhas informativas (mente), ações e manifestações (corpo) e uma espiritualidade que devolva a sacralidade da Natureza (alma). É a isso que o druidismo se dispõe.
As duas religiões não têm nada em comum. A começar, uma é cristã (kardecismo) e a outra é pagã (druidismo). No druidismo não há a comunicação com espíritos como no kardecismo (onde a comunicação é feita através da mediunidade), e o druida não se baseia nos ensinamentos de cristo, entre outras coisas que detalharemos adiante. Existe uma diferença bastante importante e que torna as duas crenças praticamente incompatíveis: druidas não acreditam que o renascimento esteja baseado em prêmios e castigos, e essa é toda a base da crença kardecista: se você faz algo ruim, cria um karma e deve voltar para resolver esse karma, se faz algo bom, sobe um degrau na evolução. No druidismo, nenhuma lei de karma opera no renascimento, não há evolução da alma, e apenas e tão somente a lei do livre arbítrio, isto é, voltar ou não depende apenas da vontade e não das ações cometidas em vida. O local onde o espírito vai voltar depende apenas da afinidade dele com outros espíritos e com os lugares. Para os druidas e druidistas, o renascimento ocorre de forma natural como o nascer do Sol no dia seguinte após sua "morte" ao anoitecer.
O druida não se comunica com os espíritos do Outro Mundo como os kardecistas fazem. É outro tipo de comunicação, é outra concepção de espírito, é outra concepção de "Outro Mundo". Os espíritos no druidismo não são apenas os mortos, como no kardecismo. Os espíritos no druidismo são tudo que nos rodeiam e permeia. São os espíritos de seres visíveis e invisíveis, vivos ou mortos, espíritos das árvores de um bosque ou das plantas da casa, como também seres espirituais, entidades, elementais (espíritos dos ventos, da chuva, do ar, etc), deidades e, claro, também os espíritos daqueles que se foram, nossos ancestrais.
A forma como o druida se comunica com os espíritos é através do estado alterado de consciência, ou transe xamânico, ou êxtase. Nenhum espírito, deidade ou entidade "toma" o corpo do druida, ele não perde a consciência, apenas mergulha num transe consciente. Nos tempos pré-cristãos, esse método incluía várias técnicas diferentes (mascar carne crua, ingerir ervas psicoativas, etc) com a finalidade de estimular uma viagem espiritual ou um sonho inspirado, o que possibilitva o druida de responder alguma questão, ou profetizar. Hoje em dia, as técnicas mais utilizadas para esse fim são a meditação, a dança (especialmente a circular), exercícios de respiração e visualização, uso de sons repetitivos como tambores, maracás, etc.
A comunicação do druida com o Outro Mundo não tem a mesma finalidade dos kardecistas e nunca, jamais, é usado o método da mediunidade, onde o espírito desencarnado influencia o médium e através dele se comunica seja escrevendo, falando, pintando. Da mesma forma, não hå incorporação no druidismo, que é um método usado na umbanda, onde o médium perde totalmente o controle do corpo e da consciência, que é assumido pela entidade incorporada. Quando um druida está em estado alterado de consciência, normalmente ele é guiado ou inspirado por uma deidade ou animal totêmico, e não pelo espírito de um morto.
A comunicação com o Outro Mundo feita pelos druidas busca a inspiração para a cura, seja em nível mental, espiritual ou físico. Essa cura, entenda-se bem, é no sentido mais amplo da palavra, não vamos também confundir com aquela outra prática kardecista de curar doenças ao se "receber" um espírito. Falo aqui da cura xamânica, da cura plena que exemplifica-se bem através dos 3 deveres do druida: curar a si mesmo, curar a comunidade, curar o mundo. Não se trata de "acabar com doenças", mas de cuidar, restabelecer, tornar melhor.
Para resumir, uso as palavras da druidesa Bandruir (Ordem Drunemeton, RJ):
"Diferentemente da Umbanda e do Espiritismo, no Druidismo, o druida não busca nem se oferece para trabalhar como expressão de espíritos desencarnados. Quando acontece de o espírito de um morto falar ou aparecer em visões ou sonhos, o Druida escuta, compreende e transmite a mensagem (se for dirigida a terceiros). Mas essa não é uma atribuição principal de um druida (portanto, não é freqüente como na Umbanda ou no Espiritismo), e nessa interação com o espírito de um morto, o druida em nenhum momento perde sua individualidade, consciência, autocontrole ou qualquer um de seus sentidos."
Andréa Éire
A wicca surge nos anos 1950, fruto do gênio criativo de Gerald Gardner e com algum elemento celta não por herança, mas por referência. Essa influência celta da wicca se deve em grande parte à amizade entre Gardner e Ross Nichols (criador da O.B.O.D.) à época em que ambos eram membros da A.O.D. (Ancient Order of Druids) na Inglaterra. A origem da wicca é essa, fácil de traçar porque recente.
Depois de muita influência de ordens semi-maçônicas da Inglaterra nos sécs. XVIII e XIX, o druidismo de então era uma mescla de entidades filantrópicas, sociedades secretas e clubes de cavalheiros. Num dado ponto, ao final do séc. XIX, existiam centenas de ordens que se entitulavam 'druídicas' sem ter nenhum conteúdo propriamente 'druídico'. Na década de 1960, Ross Nichols será o responsável pela grande mudança ao deixar a A.O.D. e fundar a Order of Bards Ovates and Druids (O.B.O.D.), dando muito mais ênfase aos aspectos mágicos e celtas. Naquela época, as muitas descobertas arqueológicas, antropológicas e etnográficas das crenças e práticas dos antigos celtas permitiram resgatar muitos elementos originais da espiritualidade celta a tantos séculos perdidos.
Gardner apresenta a wicca como "o resgate da religião celta que havia sobrevivido oculta no interior da Inglaterra, transmitida oralmente por famílias de bruxos". Para criar esse "mito", Gardner mescla diversos ingredientes:
2. os rituais sazonais celtas (apresentados a Gardner justamente por
Ross Nichols nos anos da A.O.D.);
3. as teorias (já descartadas) de Margaret Murray que afirmavam que por toda a Europa existira antes do cristianismo um culto unificado e centralizado na figura de uma Deusa da Natureza e de seu complemento masculino;
4. a ênfase nos aspectos mágicos desse suposto "culto à fertilidade", envolvendo diversos elementos de magia sexual - simbólica ou não - possivelmente herança do contato entre Gardner e Aleister Crowley.
5. A parte ritualística da wicca também tem grande influência da maçonaria e da magia cerimonial.
1. a herediariedade e o peso da iniciação;
2. a Roda do Ano;
3. o mito de uma Deusa Única e seu Consorte;
4. o Grande Rito e os festivais de fertilidade;
5. o círculo ritual, o formalismo, os instrumentos mágicos e as graduações.
Ainda que alguns grupos e ordens druídicos afirmem possuir uma herança direta dos druidas celtas de 2.000 anos atrás, o fato é que o druidismo atual é também ele uma mescla de diversos elementos:
2. as influências do cristianismo celta que se desenvolve nas ilhas da Grã-Bretanha e da Irlanda antes da imposição do cristianismo de Roma (500 d.c. - 1000 d.c.);
3. as crenças pagãs dos normandos após a invasão das ilhas pelos
vikings (800 d.c. - 1000 d.c.);
4. o cristianismo místico e a maçonaria que moldam o Renascimento Druídico do séc. XVIII;
5. o ocultismo do final do séc. XIX;
6. o Reconstrucionismo Celta do final do séc. XX;
ensinamentos "druídicos".
De semelhança podemos citar o uso do círculo mágico, o resgate das tradições celtas, a sacralidade da Natureza, a celebração da roda do ano e o fato de ambas as tradições serem pagãs e animistas, isto é, acreditam que tudo têm alma, humanos, animais, plantas, colinas, rios, etc.
De diferenças: a wicca é duoteísta, tem a deusa e o deus como principais
divindades, embora cada tradição dê um nome diferente a eles. O druidismo é politeísta, trabalha com o panteão celta principalmente (mas não exclusivamente). A wicca trabalha mais com magia cerimonial, o druidismo com magia natural e inspiração (a awen, "espírito que flui", a inspiração que flui entre os seres). O druidismo era a religião dos celtas pré-cristãos e agora está adaptado para os dias de hoje. A wicca é uma religião nova, da década de 1950.
espaço-tempo que observamos em nossa realidade. Através do ritual, o
druida atravessa as brumas ou névoas que separam os mundos. Ao fazê-lo, ele se encontra numa área de transição ou passagem que o levará até um tempo ou lugar distante.
Observe que o gaélico irlandês, além de registrar desde as fases mais antigas de sua literatura termos que designam o Outro Mundo, também possui palavras que descrevem o que se passa quando a alma ainda ligada a um veículo físico para lá se dirige, termos esses que não encontram um correspondente perfeito em nossa língua ou mesmo na dos seus vizinhos britânicos. Coincidência ou não, esses vocábulos começam com o som /i/.
Por exemplo:
- IDIRCHEO (literalmente, significa “no meio das névoas”): área de liminalidade sobreposta entre an Domhan-so (o mundo físico) e an Saol Eile (o Outro Mundo);
- IDIRCHRIAN (“no meio da distância”): tempo ou lugar muito distante;
- IDIRCHRIOS (“cinturão intermediário”): área transicional;
- ILOIREADAS: não ocorrência de geografia e tempo entre os mundos;
- ILSAOLTACTÍOCHT: (prática de) múltiplas realidades.
Ora, na escrita ogâmica, o /i/ é iodhadh, o teixo, que representa a morte, ou seja a passagem entre este mundo e o Outro. As figuras mitológicas que lhe estão associadas são Caílte, Oisín e Tuan Mac Cairell. Caílte e Oisín,
guerreiros fenianos e poetas, foram para o Outro Mundo ainda vivos e lá permaneceram por séculos, retornando à Irlanda somente depois da cristianização e conta a lenda que foram ambos ouvidos pelo evangelizador São Patrício. Tuan é um druida primordial, o único sobre vivente de uma peste que dizimou a raça de Partholon, o primeiro povo a invadir a Irlanda. Durante muitos séculos, ele viveu sob várias formas. O "Lebor Gabala Erenn" ("Livro das Conquistas da Irlanda") diz: "Aqui estão suas formas, 300 anos sob a forma de homem; 300 sob a forma de boi selvagem; 200 sob a forma de javali; 300 sob a forma de pássaro; 100 sob a forma de salmão. Um pescador o pegou com seu anzol e o levou à rainha, mulher de Muiredach Muinderg. Ele foi consumido e ela concebeu Tuan". Tuan foi testemunha de toda a história da Irlanda, que ele recordou e narrou a São Columba no séc. VI da Era Cristã. Assim a letra /i/ envolve poesia, viagens ao Outro Mundo, metamorfose e morte.
Feita essa digressão, passemos a outro ponto.
Há mil e quatrocentos anos, quando Guaire era o rei supremo da Irlanda, ele desafiou seu ollamh (chefe dos filidh, os poetas sagrados), Senchan Torpeist, a recitar o melhor de todos os poemas épicos irlandeses, o "Tain Bo Cuailgne".
Senchan teve de admitir, envergonhado, que sabia somente uns poucos
fragmentos do conto e que não conhecia ninguém que pudesse recitar mais do
que ele mesmo. Assim, perguntou qual de seus alunos estaria disposto a
tentar recuperar a história. Seu próprio filho, Muirgen, ofereceu-se, junto
com um jovem bardo chamado Eimena. Viajaram por todo o país em busca da saga perdida. Uma noite, eles estavam acampados junto a um lago em Connaught, onde havia um menir. Escute o relato:
"Vermelho e solene brilhava o amanhecer: Muirgen, de onde descansava,
observou esculpidas ao longo da borda do menir letras ogâmicas traçadas.
Disse: 'É como um monumento funerário e estas linhas sombrias encerram o
nome de algum valente guerreiro, pudesse eu ao menos decifrá-las
corretamente!' Com o indicador traçando letra após letra, sussurrando
suavemente o som de cada uma e logo entrelaçando som com som, os sinais
desse modo tomaram uma forma compreensível e, maravilhado, presa da
felicidade e do medo, Muirgen leu claramente: 'Fergus mac Roich jaz aqui'."
Ora, Fergus mac Roich era um dos principais protagonistas dos acontecimentos compilados no "Tain" e foi também seu suposto autor. Depois de descobrir sua pedra ogâmica, Muirgen pôde evocar o espírito de Fergus e este lhe contou a história inteira do "Tain", a qual Muirgen levou de volta a seu pai.
Um jovem fili, aprendiz da poesia sagrada, é capaz de chamar do além-túmulo
um espírito e com este aprender um poema épico inteiro. Se os antigos celtas
não estranhavam que um estudante pouco graduado fizesse isso, é provável
que esperassem bem mais de um druida experimentado.
E que os celtas buscavam a comunicação com os espíritos do Outro Mundo fica
também atestado pelo historiador grego Nicandro de Colófon (séc. II d. C.),
citado pelo cristão Tertuliano em seu "De Anima" (57, 10). A passagem diz:
"Em razão das visões nos sonhos diz-se com freqüência que os mortos
verdadeiramente vivem".
Os celtas passavam a noite perto das sepulturas de seus homens ilustres, ou seja, perto das sepulturas de personagens famosos (guerreiros, soberanos, sacerdotes, poetas, videntes ou outros) dormindo ou velando, à espera de uma visão ou de um sonho profético enviado pelo espírito da pessoa ali sepultada. Aliás, uma prática adotada pelos cristãos, com suas preces e vigílias junto aos restos mortais dos santos ("relíquias") guardados nas catedrais.
Portanto, a linguagem, a literatura irlandesa e o testemunho de autores não
célticos da Antiguidade confirmam os seguintes pontos: 1) sim, existe um
Outro Mundo distinto deste que os homens habitam; 2) sim, esse Outro Mundo
pode ser acessado pelos humanos; 3) sim, os seguidores do druidismo e o povo comum buscavam comunicar-se com as entidades desse Outro Mundo.
Devo esclarecer que, ao mencionar "comunicação com os espíritos do Outro
Mundo", não estou me referindo a nada como, digamos, uma sessão espírita,
conquanto seja esse um método válido. Refiro-me antes aos rituais próprios
de Samhain e Beltane, às invocações aos ancestrais que são feitas antes de
cada rito, às práticas oraculares, às orações, ao sonho, às visões, ao
transe e ao poder da Awen, que abre a mente e coloca-nos em contato direto
com o Outro Mundo. E, ao mencionar "Outro Mundo", não cometo o medieval erro cristão de localizá-lo fisicamente neste ou naquele lugar. O Outro Mundo é a matriz do mundo físico, a raiz de todas as coisas, assim como os Ancestrais
são nossas raízes. O Outro Mundo envolve e permeia o mundo físico, molda-o e o mantém da forma como é.
Qual a relação entre o Outro Mundo e o mundo material? A mesma relação que
há entre o rosto e seu reflexo no espelho.
A lagoa reflete o céu diurno e suas nuvens, o céu noturno e suas estrelas.
Se não há vento, o reflexo é nítido, límpido. Se o vento sopra, alternando
seu hálito de um lado para outro, a água se agita e o reflexo torna-se
distorcido e quase irreconhecível. Quando for possível controlar o vento,
veremos o reflexo perfeito. Ou, ao menos, o mais perfeito reflexo possível.
Bençãos de Iluminação,
Bellovessos
No druidismo antigo e moderno, portanto, existe a crença no retorno da alma (ou espírito, aqui não há diferença entre esses dois conceitos), que pode viver várias vidas terrenas. O que vai determinar quantas vidas viveremos e de que forma? Não há um julgamento moral quando alguém morre. A percepção, o desejo e a necessidade da alma são os fatores determinantes de como se dará a continuidade da vida. O druida Bellovesos nos explica:
"As condições do renascimento são determinadas por afinidades, necessidades e conveniência da alma que vai renascer. Depois de deixar este mundo, a alma faz uma viagem. Atravessa diversas etapas, recapitulando experiências, fazendo reflexões, abandonando aquilo que lhe pesa, observando o melhor e aprendendo a desejá-lo. Isso demanda um certo tempo. Ao atingir o fim da jornada, a alma encontra o lugar do repouso perfeito, de acordo com os seus desejos. Porém, se ainda sentir “saudades”, pode retornar."
Algumas almas podem decidir não retornar. Para exemplificar isso, vou fazer alusão à criação maravilhosa de Tolkien, "O Senhor dos Anéis". Quando os elfos decidem abandonar a Terra-Média para viver a eternidade em Valinor, levando com eles alguns hobbits escolhidos, é um paralelo da alma que decidiu não mais retornar, mas viver a eternidade no Outro Mundo, o mundo dos ancestrais e dos deuses. Os hobbits não foram escolhidos ao acaso: são aqueles que carregaram um fardo muito pesado (o Um Anel) e que superaram esse fardo, portanto merecem desfrutar do descanso e da cura no mundo perfeito de Valinor.
Algumas almas, no entanto, não se sentem compelidas a viver para sempre no Outro Mundo e, como possuem livre-arbítrio, podem retornar. Se sentirem uma necessidade íntima de voltar a habitar a matéria, uma inquietação que as compelem às terras mortais, nada as impedirá.
Importante ressaltar que o conceito de renascimento no druidismo é diferente do conceito de renascimento difundido por diversas correntes espiritualistas (que inclusive usam mais a palavra reencarnação). Novamente faço uso das palavras do druida Bellovesos para complementar essa idéia:
"Esta é a diferença entre o renascimento céltico e, digamos, o espírita: no primeiro não há uma ênfase na necessidade de fazer reparações. O importante é a vontade de voltar para realizar outras coisas, provar a própria força, passar por novas experiências, aprender mais. A alma é impulsionada à frente pelo desejo."
Na visão dos espíritas/espiritualistas, a alma estaria atrelada a diversos parâmetros para voltar a nascer e a diversos parâmetros de como voltar a nascer, todos baseados em julgamentos morais, em pecados, ações boas ou más ou, resumindo, ao chamado karma. As almas também estariam compulsoriamente reencarnando em busca de uma evolução espiritual, e as diversas reencarnações ocorreriam como uma obrigatoriedade para se tornar um ser mais evoluído e, depois de muitas vidas, alcançar a perfeição. Esses conceitos não existem para a mente celta e, conseqüentemente, não existem no druidismo. Para os druidas, Natureza por si só já é perfeita e fazem parte delas todos os seres visíveis e invisíveis, perfeitos em si mesmos.
Na concepção celta há um eterno intercâmbio de almas entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, ou Outro Mundo. O conto de Peredur ab Efrawc (do "Mabinogion", coleção de mitos celtas do país de gales) é uma metáfora para esse intercâmbio de almas entre os mundos:
Um dia, quando cavalgava, Peredur viu dois rebanhos de ovelhas, que pastavam nas margens de um rio. O rebanho de uma das margens era branco e o rebanho do outro lado do rio era preto. Quando uma ovelha branca balia, uma preta atravessava o rio e aparecia branca do outro lado. Quando uma ovelha preta balia, uma branca atravessava o rio e saía preta do outro lado.
Quando uma alma morre aqui, ela nasce no Outro Mundo. Quando uma alma nasce aqui, é porque morreu no Outro Mundo; é a lei do equilíbrio entre os mundos que vemos exemplificada nesse mito celta.
Andréa Éire